Jorram vozes no meu ouvido. Vozes de mulheres. Adultas, adolescentes,
crianças. Vozes que querem falar de um modo de vida, da sua
história, das suas lembranças, das suas relações, da família,
da/o companheira/o. Do singular e do plural.
Há outras vozes, que nos permitem novas reflexões.
Elas chegaram sem nem mesmo
saber que estavam chegando. Elas chegaram e nem mesmo chegaram
fisicamente. Foram transformadas. Em estatística, em siglas... Fazem
o uso da mediação de corpos militantes.
Falar
Sinto que as mulheres estão sempre sensíveis e dispostas a falar,
discutir e compartilhar questões de gênero. Principalmente, se há
violência envolvida. Sempre tem a história de uma amiga, da mãe,
da avó, da vizinha, do viral na internet, ou a sua própria história
(sendo relatada ou não na primeira pessoa). Há uma crença na nossa
sociedade de que a dita igualdade que a Constituição Federal fala
em seu artigo 5º, é real no cotidiano de mulheres e de outras
minorias. Para quem tem dúvida sugiro fazer uma escuta “atenta e
humanizada” dos casos. Ou simplesmente se perguntar? Por que as
mulheres (aqui também pode se inserir qualquer grupo minoritário)
tem tanta necessidade de falar sobre a sua constituição histórica?
Ou por que tantas mulheres precisam contar a sua história de
violência?!
Na época da promulgação da lei do Feminicídio no início de
2015, acompanhei muito de longe os comentários e as discussões.
Primeiro, porque de tempos em tempos tenho necessidade de Detox das
discussões militantes; fico sensível a tudo e acabo ficando muito
deprimida e desesperançada com alguns movimentos conservadores.
Segundo, porque era uma alteração no Código Penal, tipificando o
assassinato de mulheres como crime hediondo. Achei positivo mas por
outro lado ficava pensando que era mais uma vez uma lei. As leis
teriam a força de mudar o machismo enraizada na nossa sociedade? E a
lei Maria da Penha, que tenta combater em vários aspectos a nossa
cultura de violência gênero? Não tem funcionado?
Despertar
Há duas semanas participei de um Seminário sobre tema, cujo título
era: Determinação social e o enfrentamento da violência contra as
mulheres no contexto da Lei do Feminicídio. Estava resistente.
Nesses dias vivi uma imersão
na discussão. Uma boa imersão, que floresceu novos questionamentos
a partir das discussões feitas.
Parênteses: este texto é uma
tentativa de elaborar as discussões que tive a partir das minhas
leituras anteriores. É um exercício, antes de tudo, que tento fazer
com alguma frequência. Talvez eu consiga, talvez só chegue até
metade do caminho. Tenho muita dificuldade em elaborar textos em cima
das falas de outros. Fecha parênteses.
Gosto das contextualizações
históricas. Sempre que se fala,
se fala a partir de um tempo e de um lugar. Por mais que se tente
universalizar as histórias, como Betty Milan1
costuma fazer, para criar uma empatia entre quem produz e quem lê.
Isso para dizer: não se fala em opressão de gênero hoje, apenas
pelo hoje. Se fala, principalmente, pelo caminho que foi percorrido
até aqui. Com muitas vitórias, de certo, mas com muitas batalhas
ainda para ganhar.
Feminicídio
Falar em feminicídio, é falar
em uma epidemia, em algumas regiões do país. É falar de uma
cultura de violência. É falar de uma sociedade patriarcal onde a
mulher ainda é encarada como objeto. Falar de um sistema de
regulação de corpos. É falar da sexualidade vigiada das mulheres.
É falar de reserva de espaços público e privado a partir da
representação de gênero.
Para começar uma conversa
sobre o feminicídio temos que ter em mente que o reconhecimento da
lutas das mulheres não começa com promulgação da lei. Pelo
contrário, o movimento sofre uma derrota com a promulgação. Na
redação da lei saiu a palavra gênero e ficou “sexo feminino”
(“contra
a mulher por razões da condição de sexo feminino”).
E as pessoas trans?
Sendo que:
“Considera-se
que há razões de condição de sexo feminino quando o crime
envolve:
I
- violência doméstica e familiar;
II
- menosprezo ou discriminação à condição de mulher.”
Quando um prostituta é morta,
ela entra nas estatísticas de feminicídio? É uma mulher, sendo
morta por discriminação à sua condição. Mas, como é tratada
pelos órgãos oficiais?!
Não acho que a questão da
violência de gênero se resolva com a assinatura de uma lei. E tenho
minhas dúvidas que funcione como um processo educativo.
A lei do Feminicídio trata da
morte de mulheres. Não queremos que mulheres sejam mortas por
suas/seus companheiras/companheiros. Queremos que as mulheres sejam
respeitadas e tenha liberdade de fazer as suas escolhas, e que o
estado garanta as oportunidades.
Quando, em 2006, foi a
promulgada a Lei Maria da Penha achei que era um avanço no
reconhecimento da desigualdade de gênero, um reconhecimento
institucional do que mulheres vivem cotidianamente. Não só a
violência física mas as muitas nuances de violências.
É importante termos em mente
que a nossa sociedade é uma sociedade violenta, não só pelo
números de mortes violentas e da violência urbana. Somos violento
no nosso dia a dia, na palmada no filho, na grosseria com o colega de
trabalho, no trânsito a cada ultrapassagem. Nas nossas músicas
infantis; basta lembrar de “atirei o pau no gato”.
Muitas vezes reproduzimos
comportamento violento sem nos darmos conta. É sempre bom lembrar.
Encerrando a conversa
Eu sei que abri muitas
questões. Porém meu esforço há muito foi excedido.
Têm muitas discussões a serem
feitas. No âmbito do Direito, da Sociologia, da Saúde. Há muitas
pesquisas sendo realizadas dentro e fora das Universidades.
O que quero ter em mente é do
exercício diário de uma militância. Da importância das leituras,
das atualizações. Da escrita crítica. Do processo de
racionalização do conhecimento. Da tentativa solitária de fazer
pensar, de sociologizar a vida.
Seguem algumas referências:
Acessado em: 09/06/2015
http://aurineybrito.jusbrasil.com.br/artigos/172479028/lei-do-feminicidio-entenda-o-que-mudou
Acessado em: 03/06/2015
http://justificando.com/2015/03/13/os-paradoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-movimentos-feministas/
Acessado em 07/06/2015
1Psicanalista
brasileira escreveu: “Aprendi com o trabalho que, seja qual for a
história, nós podemos nos reconhecer nela, porque a escuta
humaniza. Quando escutado, o drama do outro pode se tornar meu. Tiro
dele ensinamentos preciosos.” p. 12